quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

à Leste do Paraíso...

Eu tive um relacionamento amoroso com um homem ucraniano durante 3 anos, e algumas despedidas... Mas sei que nem de longe ele pode ser representativo dos homens ucranianos. Por ter vivdo muitas situações limites ele amadureceu e cresceu além, e se tornou um homem sensível, e até romântico... mas não é o único que conheço, pois aí pelas obras há muitos... uma vez tive um convidado ucraniano em minha casa, que me causou tantos problemas, bêbado, que tive de chamar a polícia pra ele três vezes no mesmo dia. E ele só me deixou em paz depois de ser devidamente ameaçado por outro ucraniano, ex-guerrilheiro soviético...

Antes de conhecer o Igor, eu nunca tinha ouvido falar em Ucrânia na minha vida.
Na escola, estudei apenas a União Soviética, o bloco dos países comunistas...

As histórias são muitas, mas uma eu acho que ilustra bem a vida das mulheres ucranianas...

A filha do Igor, já com 18 anos, estava noiva de um rapaz, mas 3 meses antes do casamento decidiu não se casar... ele não gostou muito, pq queria que a filha se casasse cedo, depois dos 20, já começa a ficar velha para arranjar bom casamento na Ucrânia... Mas o problema foi que ela começou a namorar um homem separado, e que ja tinha um filho... Ele disse pra mim:

_Se ela não terminar esse namoro, eu vou lá e vou bater tanto nela, que ela vai ficar inválida em cima da cama para o resto da vida... prefiro uma filha inválida do que "prostituta"...

Eu não acreditava no que ele falava, pq como um homem que me trazia flores e bombons quase todos os dias, podia falar daquele jeito da própria filha... Pra mim, só podia ser em sentido figurado, uma força de expressão, mas ele falava com tanta fúria... Então conversando com um outro ucraniano, tbm muito educado e simpático, que me deu algumas aulas de língua ucraniana, eu perguntei sobre a vida das pessoas lá, e das mulheres e falei do que o Igor dizia sobre a filha e perguntei inocente, mas com dúvida:

_Ele fala isso num sentido figurado, não é?

_Não!!! Se ele fala que vai quebrar as duas pernas dela pra ela não poder mais sair na rua e se encontrar com o tal gajo, ele está falando em fazer isso de verdade!!! Pq para nós, ucranianos uma filha deve obedecer ao pai, em tudo, o homem é alei dentro da casa, e se um pai diz, a filha tem de fazer como ele diz... As mulheres ucranianas sabem o seu lugar, nós não precisamos fazer isso de fato, pq elas desde pequenas são educadas para ser uma mulher como deve ser, sempre calma, fazer as coisas que tem de fazer e cuidar do marido, com respeito pq ele é quem manda...

Nem preciso falar do meu espanto... O namoro ainda continuou por um tempo, mas eu desisti de aprender ucraniano... já não pensava em de forma nenhuma ir pra lá... Um amigo meu romeno dizia: "Se tu vais pra Ucrânia com ele para férias, antes despede de tua família, e de parentes pq vc pode não voltar com vida"... e vivia perguntando se ele me batia...

Claro, deixando a rivalidade entre eles de lado, infelizmente pode haver muita verdade no que ele dizia, pois ao que parece os ucranianos são sim um povo muito intolerante com as mulheres livres... Ele nunca me bateu, nunca gritou comigo, sempre foi doce e meigo, mas pelo sim pelo não, tbm eu às vezes tinha de pisar em ovos, pq além de tudo ele bebia muito nos dias de folga... e me dizia que se eu o traísse, ele ia me matar com as próprias mãos, pq ele não ia gastar dinheiro com uma bala de revolver, era muito caro, talvez ele usasse uma faca... falava isso em tom de brincadeira, mas claro, me assustava... Agora finalmente o namoro acabou, e eu não morri... ufa!!! Isso é para ilustrar o que eu sei por experiência própria...



Outra coisa que me assustou foi que ao pesquisar na internet sobre a mulher ucraniana, com excessão daquela mulher que morreu em Sintra atacada pelos cães, as primeiras páginas é quase tudo de anúncios de sexo e casamento... Importante para lembrar que o tráfico de mulheres da Europa de Leste ainda é um dos maiores problemas das mulheres naquela região, pois como já sabemos, as ameaças não são de brincadeira... Tem um filme da Nicole Kidman, que ilustra muito bem esse tipo de violência... acho que é Um Amor na Rússia...vou ver depois corrijo...



Aqui trago uma matéria do Público, mas relativamente antiga sobre o assunto... a foto é de Clarice Lispector, que tbm era ucraniana, apesar de ter vivdo muitos anos no Brasil... Não quis colocar fotos de anúncios sexuais e/ou casamenteiros por motivos óbvios...





Era uma vez na Ucrânia
Por Paulo Moura
21.10.2001
O tráfico de mulheres para a prostituição
é um dos negócios mais rentáveis do mundo,
a par com o de droga e de armas.
E é o de crescimento mais rápido em toda a economia global.

Todos os anos, milhões de mulheres são vendidas
e obrigadas a prostituir-se, em condições
de extrema desumanidade e violência.
Até há cinco anos, estas mulheres provinham
quase exclusivamente da Ásia e da América do Sul,
mas hoje são, em número cada vez maior,
eslavas dos países da Europa de Leste ex-comunista.
A Ucrânia é uma das principais origens deste tráfico,
que além de rentável é dos mais seguros do mundo:
a legislação e a polícia não estão preparadas
para combater as mafias que o dominam,
e nenhuma rede foi até hoje desmantelada.
A Ucrânia é um país orgulhoso mas
isolado e tradicionalista,
rico mas que vive na miséria,
com uma população culta mas desinformada e inocente.
Um país de mulheres de sonho
que vivem de sonhos irrealizáveis.
Um autêntico viveiro para o tráfico
internacional de prostituição.
"Era uma vez duas bailarinas.
Não especialmente bonitas.
Mas altas, esguias e louras,
duas bailarinas ucranianas, 26 e 18 anos.
Conheceram-se na escola de artes
e formaram um dueto de dança jazz.
Actuavam em clubes da sua cidade,
Lvov, na parte ocidental do país,
por dez dólares a noite. Quando actuavam.
Mas eram profissionais.
"O nosso trabalho tem qualidade,
não somos 'strippers' nem nada disso.
Levamos a dança muito a sério."
Natalia está recostada na cadeira,
descalçou as sandálias e apoia um
pé no banco onde se senta a amiga.
"A dança é a minha vida."
Svetlana está inclinada para a frente,
o cotovelo poisado no joelho.
Têm ambas o cabelo curto e vestem jeans gastos.
Dez dólares por noite.
"Era impossível viver da nossa arte.
Mas era também impossível arranjar outro trabalho."
Svetlana, a mais nova, tem uma voz magoada.
Natalia está cheia de despeito.
Fala como uma miúda birrenta.
"Foi tudo tratado com pessoas de confiança, que conhecíamos.
" Vê-se que estão as duas a afectar poses
e atitudes exageradamente arrapazadas,
como uma espécie de álibi.
Vê-se que estão à beira do desespero.
Conheciam a esposa do homem que as contactou.
Era vizinho de Svetlana.
Apresentou-se como o representante em
Lvov de uma agência polaca. Uma agência de artistas.
"Era simpático, parecia tudo muito sério."
Dera até a Natalia o contacto de uma rapariga
que tinha aceite a proposta de trabalho e já regressara.
"Ela garantiu-me que correra tudo bem,
e ganhara muito dinheiro."
O homem não era insistente.
Mas ia tornando clara a proposta:
iriam as duas trabalhar como bailarinas,
em dueto, durante seis meses para... o Japão.
Salário base: 700 dólares por mês (767 euros/153 contos),
com contrato assinado.
Antes do mais era lisonjeiro,
embora o homem nunca as tivesse visto dançar.
"Não é preciso, eu sei que vocês são profissionais", dissera.
Setecentos dólares.
O salário médio na Ucrânia não chega aos 20 dólares mensais.
Ficariam ricas fazendo o que mais gostavam.
E conheceriam um país maravilhoso.
E ainda poderiam ser descobertas por
algum empresário artístico.
E... O homem trouxe o contrato para assinar.
Tinha tudo especificado: o salário, em ienes,
o lugar, Wakayama. Não precisava qual o tipo de trabalho,
uma formalidade a que não deram importância.
Assinaram. Duas semanas depois tinham os vistos
e partiram com o homem, de carro, para Varsóvia.
"Estávamos assustadas, mas ao mesmo tempo
era uma excitação. Nunca tínhamos saído do país.
" Na capital polaca, o homem levou-as ao aeroporto.
O voo para Osaca fazia escala em Amesterdão.
Aí, tiveram várias horas de espera,
que aproveitaram para ler o contrato em pormenor.
Repararam que o local de trabalho mencionado
no papel de cada uma não coincidia.
Como poderiam então fazer o número
tão exaustivamente ensaiado, em dueto?
Do aeroporto, telefonaram para Varsóvia.
Talvez já procurassem um pretexto para não partirem.
"É mais uma formalidade sem significado", garantiu o homem.
Aeroporto de Osaca. Um velho japonês, gordo e baixinho,
que não falava línguas, esperava-as.
"Wakayama, Poland... Wakayama, Poland?...",
dizia ele, rodopiando entre os passageiros.
Natalia faz uma careta, enche as bochechas,
para imitar a voz do japonês. "Wakayama? Poland?"
Alyna Fedkovych, advogada a trabalhar
para o centro Mulheres pelas Mulheres, em Lvov,
consegue combinar um sorriso c
om o olhar angustiado de Hamlet.
"Os jornais nunca falam sobre o que se passa.
Ninguém tem consciência de nada",
diz ela, com a ênfase dos lunáticos, que,
reclamando conhecimento exclusivo da acção
de forças malévolas, temem não ser levados a sério.
"As raparigas assinam contratos
ou acreditam em promessas muitas vezes
porque os interlocutores são pessoas daqui,
vizinhos, ou mesmo amigos ou amigas.
Os angariadores e os intermediários são geralmente
apenas um elo de uma cadeia cujo fim nunca se vê."
Tudo se passa como se a realidade tivesse
um lado cor-de-rosa e um lado negro.
Duas faces, que, por serem da mesma moeda,
estivessem impedidas de ver-se uma à outra.
Por um lado, os sonhos das mulheres ucranianas
de terem uma vida melhor no estrangeiro;
por outro, a exploração e a escravatura sexual
dessas mulheres no estrangeiro.
É um truque de ilusionismo. Mas funciona.
Cada ano, mais mulheres querem ir para o estrangeiro,
e o negócio de tráfico de mulheres
é o que cresce mais rapidamente no mundo.
Segundo La Strada - uma organização não governamental que,
como a Mulheres pelas Mulheres,
tenta informar as ucranianas da verdadeira natureza
das "oportunidades douradas" no estrangeiro ,
420 mil mulheres tinham saído da Ucrânia, em 1999.
Daí para cá o número tem aumentado
incontroladamente, segundo a mesma ONG.
"O mês passado, contactou-nos uma mulher
que lera no jornal um anúncio de um alemão
que propunha casamento a uma ucraniana", conta Alyna.
"Mandou uma carta e recebeu um questionário,
que preencheu e enviou de volta.
Logo a seguir foi contactada por uma mulher daqui,
de Lvov, que se disse representante de uma agência polaca.
Propôs-lhe ir a Varsóvia,
com um grupo de umas dez ucranianas,
para um 'meeting' com homens alemães.
Estes não podiam vir a Lvov, explicou a agente,
devido à dificuldade em obterem vistos.
Era óbvio que tudo aquilo soava a falso,
tanto mais que a mulher deveria partir,
com o grupo e a agente, sem quaisquer contactos
no destino ou reservas de hotel,
e aconselhámo-la a não ir à Polónia.
Mas ela ignorou-nos e foi. Ainda não tivemos notícias.
" A motivação de muitas ucranianas que vão
para o estrangeiro é o casamento.
Os jornais estão cheios de anúncios de homens
ocidentais que pretendem casar com eslavas.
Há agências matrimoniais, especializadas em r
elações leste-oeste, com publicidade em jornais e revistas,
com cartazes nas paragens de autocarro,
com homens-sanduíche a passear-se nas ruas de Kiev
e outras grandes cidades, com "sites" na Internet.
A Net, a que todos os jovens na Ucrânia têm acesso,
através dos cibercafés, é provavelmente o veículo
mais eficaz de propaganda das agências
de casamentos internacionais.
Bem como das agências de emprego.
Muitas mulheres pretendem apenas trabalhar.
Empregos como empregada de restaurante ou de bar,
ama de crianças, empregada doméstica,
bailarina, modelo, secretária, enfermeira,
recepcionista, acompanhante, são oferecidos na Net
e em anúncios de jornais, com salários impensáveis
para um ucraniano médio.
Há depois um terceiro grupo de mulheres
que julga não ter ilusões.
O seu propósito é mesmo ir trabalhar
para o estrangeiro como prostitutas.
Vender o corpo, durante meia dúzia de anos,
num bar ou por conta própria,
e acumular assim dinheiro suficiente
para comprar uma casa e um carro
e começar uma vida nova.
Tudo isto permanece do lado cor-de-rosa.
Era uma vez uma rapariga que vivia
numa aldeia do oriente da Ucrânia.
O pai morrera e a mãe, doente,
não podia sustentar os cinco filhos.
Quando acabou o liceu, Maria aceitou uma
oferta de emprego na Hungria, por 500 dólares por mês.
Numa semana, a agência intermediária deu-lhe
o passaporte e levou-a para Budapeste,
com outras duas ucranianas.
Na fronteira, um homem ficou com os passaportes
das três raparigas, levou-as para um bar
e fechou-as num quarto.
Uma mulher veio dizer-lhes que deveriam fazer
tudo o que lhes fosse ordenado,
e elas compreenderam que se tratava de prostituição.
As outras duas raparigas aceitaram.
Maria recusou-se, e foi espancada e violada por dois homens.
Depois foi vendida a um bordel na Áustria.
Meses depois, conseguiu fugir, com outra rapariga.
Telefonaram a um antigo cliente
que tinha prometido ajudá-las.
O suposto benfeitor deu-lhes guarida em casa
mas dias depois trazia homens para
fazerem sexo com elas.
As raparigas resistiram e foram de novo espancadas,
e fechadas numa cave. Acabaram por fugir.
Maria pediu ajuda a uma colega do bar
onde trabalhara antes, que conseguiu recuperar-lhe
o passaporte. Mas fê-la prostituir-se de novo,
até lhe pagar o passaporte.
O pesadelo só terminou quando a polícia
fez uma rusga no bar e Maria foi presa.
Com a ajuda de uma ONG, regressou à Ucrânia,
mas nunca mais à sua aldeia,
onde os responsáveis pela sua venda pertencem
a uma família que controla o poder local.
Nunca foram punidos. Este é o lado negro.
Todas as ONG, as polícias, as organizações de mulheres,
a ONU, os governos, o conhecem,
mas praticamente não há casos de
desmantelamento de redes, de prisões de responsáveis.
E também parece não haver forma de deter o fluxo.
De impedir as mulheres de continuarem a partir,
ou de o fazerem sem tomar as necessárias precauções.
O padrão repete-se. As mulheres são aliciadas
com empregos bem pagos em países da Europa Ocidental,
nos EUA ou no Japão. Saem da Ucrânia de carro,
com os intermediários locais que as contactaram
e lhes arranjaram rapidamente documentos e vistos.
Chegam à Polónia ou à Hungria e são reenviadas,
de avião, para países ocidentais, ou para os Balcãs,
ou a Turquia, ou o Médio Oriente.
A Sérvia é um destino muito comum,
de onde muitas vão para a Macedónia e para o Kosovo,
onde os milhares de soldados e funcionários internacionais
têm pouco em que gastar os chorudos salários...
É-lhes tirado o passaporte e são obrigadas
a prostituir-se até retribuírem o que
alegadamente devem: documentos, viagens,
taxa que se pagou aos agentes intermediários.
Segundo as estimativas da IOM
(International Organization for Migration),
uma organização humanitária intergovernamental
com sede em Genebra, uma mulher tem de pagar
entre sete mil e 20 mil dólares de "dívida".
Com essa mesma mulher, o proxeneta
ou o bordel ganham entre sete mil e 10 mil dólares por mês.
Cada bordel funciona com pelo menos umas 15 raparigas,
o que representa um ganho de 100 a 150 mil dólares mensais,
livres de impostos. Mas dos 500 ou 1000 dólares
que cada rapariga faz por dia
só fica com uns 20 dólares para si.
Logo, levará entre um a dois anos,
trabalhando diariamente
(uma média de dez clientes por dia)
a pagar toda a dívida.
Considerando que isso é mais do que o seu
"período de validade" num clube,
após o que terá de ser de novo vendida,
contraindo nova dívida,
é fácil perceber que se trata de um negócio ruinoso.
É normal as mulheres serem espancadas,
violadas e até assassinadas por já não
renderem o suficiente, ou simplesmente
para dar o exemplo, mantendo o clima de terror.
Ficam alojadas em caves, em grupos de várias dezenas,
dormindo em beliches, ou quatro em cada cama,
ou em mesas de massagem,
frequentemente algemadas,
e, ao mínimo sinal de rebeldia,
são ameaçadas com a denúncia à polícia
e prisão, por não terem documentos.
Se tentarem fugir ou queixar-se, são punidas:
espancamentos, isolamento em quartos
sem luz nem comida, durante vários dias, ou a morte.
Geralmente sem falarem a língua do país,
as mulheres, vencidas pelo medo,
acabam por se subjugar a uma vida de escravidão.
Por norma, nunca permanecem
muito tempo no mesmo local.
O tipo de clientela que atraem aprecia a variedade,
pelo que os traficantes arranjam forma
de terem as mulheres constantemente a circular,
de cidade em cidade, de país em país.
Após explorarem uma prostituta durante uns meses,
ou um ano, os proprietários dos bordéis
vendem-na a outra casa.
O preço pode oscilar entre os mil e os três mil dólares.
E assim sucessivamente até a mulher já não ter préstimo,
e ser abandonada. Aí, já terá contraído HIV ou enlouquecido.
De qualquer forma, nunca regressará à sua terra
nem à sua família, por vergonha,
ou porque sabe que não seria aceite.
Para estas mulheres, não há qualquer saída.
A não ser tornarem-se elas próprias
traficantes ou angariadoras.
Era uma vez uma mãe que chegou à sede de Kiev
da Winrock International, outra ONG
contra o tráfico de mulheres, queixando-se de que a filha,
Irina, que tinha conseguido fugir da prostituição
forçada na Turquia, estava prestes
a embarcar de novo para lá,
obrigada pelos mafiosos que a exploravam.
A Winrock contactou a polícia e o aeroporto
e mandou-se deter o avião.
A bordo, ia Irina e outras cinco ucranianas,
e todas declararam ir para a Turquia trabalhar num bordel.
Sabiam que seriam vendidas por dois mil dólares
e que teriam de atender 40 clientes de graça,
até pagarem a dívida.
Mas aceitavam as condições, porque na Ucrânia
não tinham hipótese de ganhar dinheiro nenhum.
Irina, que trabalhou na Turquia durante
um ano e meio como escrava sexual,
acabou por deixar-se convencer a vir à
Ucrânia buscar mais mulheres.
Estas cinco vão render-lhe dez mil dólares
e são o início de uma promissora e segura
carreira no tráfico de mulheres.
A polícia teve de as deixar partir.
A polícia ucraniana vive do lado cor-de-rosa.
O tráfico de mulheres é o negócio em
mais rápido crescimento no mundo.
E como, nos últimos dez anos,
a mulher eslava se tornou na eleita
dos apreciadores de escravas sexuais,
o negócio registou um crescimento
exponencial na Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Moldávia.
Segundo o Departamento de Estado americano,
é um dos mais rentáveis, juntamente
com o tráfico de droga e o de armas.
Mas nestes a mercadoria só pode ser
vendida uma vez pelo traficante.
Não é assim no caso das mulheres.
Elas podem ser usadas vezes sem conta e,
por fim, são vendidas de novo e de novo.
Além disso, é muito mais fácil atravessar
com elas as fronteiras do que com droga ou armas.
Acresce a estas vantagens a de ser
o negócio ilegal mais seguro do mundo.
Sabe-se que quem está à sua frente s
ão as grandes mafias organizadas,
mas nunca foi desmantelada qualquer rede.
"A legislação ucraniana não está
preparada para esta realidade",
explica-nos Olga Harasymiv,
outra advogada a trabalhar com a Mulheres pelas Mulheres,
em Lvov. "Existe, desde 1998, uma lei sobre
tráfico de mulheres, mas é tão vaga,
usa termos tão imprecisos, que, na prática,
é impossível de aplicar." De facto,
nunca nenhum advogado conseguiu
incriminar ninguém com o famoso artigo 124-
1 do Código Criminal. Mas também é
um facto que muito poucos casos
chegaram a tribunal.
A polícia não prende ninguém,
e as vítimas, em parte por causa disso,
também não têm o hábito de se queixarem à polícia.
"As pessoas não sabem nada dos seus direitos",
explica-nos Olga. "É uma herança do sistema soviético.
Ninguém se convenceu ainda de que
as autoridades existem para nos ajudar
e não para nos perseguir."
Pode dizer-se que a Ucrânia é um regime policial.
Existem, no país, um milhão de polícias,
ou seja, um por cada 50 habitantes.
Em 1999, por pressão internacional
e por ter tomado consciência da dimensão do problema,
o Governo criou um programa de prevenção
contra o tráfico de mulheres,
e uma unidade especial da polícia para lidar
com este tipo de casos. Essa unidade
conta com grupos especializados nas esquadras,
nas cidades consideradas afectadas pelo
problema - as que estão próximas
das fronteiras. Lvov, a poucas dezenas
de quilómetros tanto da fronteira húngara
como da polaca, não podia obedecer
mais a este critério. Há portanto uma
unidade especial da polícia para o tráfico de mulheres.
Tem quatro elementos.
Entrevistámos o seu chefe, Ivan.
"Já enviámos dois casos para tribunal", conta ele.
"O de uma rapariga que foi para a República Checa
e o de um grupo que foi para a Grécia.
Pensavam que iam trabalhar em limpezas,
mas afinal era prostituição.
Conseguiram escapar, graças à ajuda de um cliente ucraniano,
e vieram à polícia. Mas não prendemos nenhum suspeito."
Aliás, nunca prenderam ninguém,
confessa Ivan, um homem de trinta e poucos anos
com botas de "cowboy" e olhar fugidio.
A explicação é que são poucos e não têm recursos.
"Somos só quatro. Devíamos ser oito!",
queixa-se o chefe do departamento especial
de combate ao tráfico de mulheres.
E acrescenta que não têm carros.
Se precisam de ir urgentemente a um local
para investigar algo suspeito,
têm de apanhar um autocarro
(e pagar o bilhete do seu bolso).
Nem têm intercomunicadores nem telemóveis.
Para chamar reforços com urgência,
têm de ir a uma cabine, que raramente funciona
(e mais uma vez pagar do seu bolso).
O problema é grave, considera Ivan, porque,
com um salário de 40 dólares por mês (44 euros/nove contos),
os polícias não têm dinheiro para autocarros
e telefonemas, e evitam sair da esquadra.
Não porque exista um tráfico colossal
e organizado a fazer-se descontraidamente
nas suas barbas. "Os responsáveis por estes crimes
são indivíduos actuando sozinhos,
ou em pequenos grupos, para ganhar algum dinheiro.
Não existe nenhuma ligação com as mafias
e o crime organizado estrangeiros",
considera Ivan, com a autoridade
que a insígnia lhe confere.
E por isso não acha necessário estabelecer qualquer
cooperação com as polícias internacionais
nem com a guarda de fronteiras.
Do aeroporto de Osaca, o gordo japonês
levou Natalia e Svetlana de carro até Wakayama.
Foram depositadas numa casa com muitas raparigas.
Polacas, ucranianas, filipinas.
"Passaporte, passaporte", pediu o gordo.
Natalia a imitá-lo com as bochechas cheias de ar.
Na casa havia ucranianas que tinham aprendido japonês.
Ajudaram a traduzir, quando as duas recém-chegadas
indagaram para que queria o gordo os passaportes.
Era para as registar na Polícia, disse o gordo.
Mas raparigas que estavam lá há meses
contaram que nunca mais viram os documentos,
desde que os entregaram. Natalia e Svetlana conseguiram,
nesse dia, manter consigo os passaportes.
À noite, foram levadas para um clube de alterne.
Teriam de ficar sentadas, à espera que algum cliente
lhes oferecesse uma bebida.
Na noite seguinte talvez dançassem,
disseram-lhes, quando perguntaram.
Disseram-lhes também que teriam de usar mini-saia.
O sistema era ficar à espera.
Se um cliente as convidasse para beber,
ganhavam dois dólares extra.
Quando uma rapariga convidada por um cliente
tinha de ir ter com outro,
podiam ser chamadas para a substituir.
Nesse caso não ganhavam nada.
Esperaram. Sentadas, com as suas calças de ganga,
duas bailarinas de jazz arrapazadas e aturdidas.
Ninguém as convidou. Tiveram de fazer algumas substituições.
Os clientes eram homens de meia-idade,
espaventosos e enfadados.
"Chegámos a pensar que talvez valesse a pena.
Já que ali estávamos, faríamos o que
fosse preciso para ganhar dinheiro."
Ninguém as convidou.
Era uma vez uma rapariga que vivia para a Internet.
Gastava todo o dinheiro que ganhava no cibercafé,
onde ia todos os dias. Punha pequenos anúncios
em "sites" de relações, de casamentos,
de contactos com estrangeiros.
Respondemos ao seu anúncio e ela enviou logo um "e-mail":
Meu querido: Acho que o melhor é começar por
te dizer alguma coisa sobre mim.
O meu nome é Natercia, vivo na Ucrânia, em Odessa.
Sou atraente, tenho 22 anos, 1m70,
olhos cor de amêndoa, cabelos pelos ombros, cor de ouro.
Sou formada em Economia e Finanças.
Adoro dança e música. Fiz a escola de ballet e toco piano.
Acredito que só vivemos uma vez e, por isso,
é preciso aproveitar cada momento ao máximo.
Também acredito que tudo acontece por uma razão.
Mesmo as pequenas coisas acontecem para nos
ensinar alguma lição valiosa,
tornando-nos mais inteligentes e sábios.
Há muitas coisas na vida que atraem os olhos,
mas só algumas que atraem o coração.
São essas que importam.
Gosto de ver televisão, e de cinema.
Os meus filmes preferidos: "Sleepless in Seatle", "O Sexto Sentido".
Gosto de livros românticos, de cozinhar,
de conversar com amigos.
Sou uma pessoa simples, generosa,
sensível, divertida, sincera, honesta,
leal, sonhadora e muito romântica.
Procuro alguém que faça o meu coração sorrir,
porque um sorriso pode fazer um dia negro
resplandecer de luz.
Quando amo alguém, entrego-me totalmente.
Procuro um homem que queira partilhar
o meu amor pela vida, ser o meu companheiro,
o meu amigo, o meu amante, o meu marido
e que me ame pelo que eu sou.
Gostaria que nos tornássemos amigos, e talvez mais...
Espero ansiosa uma resposta tua...
Sinceramente, Natercia
As mulheres mergulham no lado negro
porque nada têm a perder. Na Ucrânia,
70% da população vive abaixo do limiar da pobreza.
O desemprego atinge, pelo menos, 50%.
E destes, entre 70 a 80 por cento são mulheres.
Todas estas percentagens estão a aumentar.
"A maioria das mulheres que vão para o estrangeiro
e acabam a trabalhar como prostitutas provêm
das pequenas cidades, onde há muito desemprego",
explica Alyna, da Mulheres pelas Mulheres.
"Muitas dessas cidades tinham grandes indústrias,
geralmente uma só fábrica, onde toda a população trabalhava.
Essas fábricas fecharam.
" Num cenário de crise extrema,
a situação das mulheres é incomparavelmente
pior do que a dos homens.
Tornou-se normal, na marcação de uma
entrevista de emprego, ser perguntado
a uma mulher se é casada, se tem filhos,
a cor do cabelo e dos olhos, as medidas
e pedida uma fotografia.
Num país onde todo o sistema de valores
caiu em bloco, a discriminação sexual faz-se abertamente,
sem qualquer escrúpulo ou vergonha.
A violência doméstica atinge níveis inimagináveis,
na Ucrânia. Segundo a IOM,
praticamente todas as mulheres
do país já foram vítimas dela.
Mas nada disto afecta o mundo cor-de-rosa.
A literatura romântica de cordel vende-se aos milhões.
E a maioria das mulheres continua a acreditar
em príncipes encantados, em aventuras
com finais felizes e amores eternos
num cenário de palácios, carros de luxo e roupas glamorosas
- e num mundo mágico onde
tudo isso é possível: o Ocidente.
O ano passado, a Mulheres pelas Mulheres
fez uma sondagem nas escolas de Lvov.
Perguntaram a raparigas de 17 e 18 anos
como imaginavam a sua vida daqui a dez anos.
Mais de 80 por cento responderam algo como isto:
viverei numa linda casa,
num lindo país do Ocidente,
servindo o meu marido estrangeiro.
Todos os meses, na sede da organização,
é dado um curso para raparigas que
querem sair do país, designado
"Trabalhar no estrangeiro - mito e realidade".
Halia, loura e bonita, 17 anos, é uma das
20 raparigas entre os 15 e os 35 anos
que estão a frequentar o curso.
Está desempregada e quer ir para o estrangeiro,
"para conhecer novas pessoas e novos lugares,
ter aventuras, talvez conhecer alguém... mas depois voltar".
Susana, 22 anos, também loura e ainda mais bonita,
é enfermeira e pensa ir para Inglaterra
estudar Psicologia.
"Quero ganhar dinheiro, ter uma carreira e casar.
Tenho amigas que estão a trabalhar
na Turquia e em Espanha. Acho que a vida lá é muito boa."
Olya, a professora, diz-nos que muitas das raparigas,
principalmente as que vêm do campo,
têm uma ideia absolutamente mítica do Ocidente.
"Elas não fazem a mínima ideia do que as espera.
Não falam nenhuma língua,
nunca viram uma grande cidade,
muitas vêm de aldeias onde não há electricidade.
A sua vulnerabilidade é assustadora.
Mas estão determinadas a partir.
Ensinamos-lhes coisas básicas como
informar-se sobre a empresa empregadora,
não entregar os passaportes a ninguém..."
Na Ucrânia tradicional, uma mulher com mais
de 22 anos dificilmente arranja marido.
Por isso, os sonhos mudam ligeiramente de tom,
depois dessa idade. "Dividimo-las em dois grupos,
de acordo com o tipo das suas ilusões",
explica Lilya Guk, a directora do centro Mulheres pelas Mulheres.
"As de 18 a 20 anos, que procuram o príncipe encantado;
e as de 25 a 35, que sonham com uma vida independente e livre."
Para estas, mas também para muitas adolescentes
dos meios mais urbanos, a prostituição surge
como um ideal de vida aceitável e até fascinante.
Numa sondagem feita numa universidade em Kiev,
mais de 50% das raparigas declararam que
gostariam de ser prostitutas de luxo,
para poderem ter roupas e carros elegantes,
ter muito dinheiro e ir a restaurantes da moda.
Era uma vez uma mulher a quem ocorreu
de súbito um número de telefone, e marcou.
Um dia, tinha ido dar um passeio,
na sua aldeia da Ucrânia oriental, e desapareceu.
Os pais procuraram-na em vão por todo o lado.
Já tinham desistido quando,
um ano mais tarde, ela telefonou.
Estava em Moscovo e pedia para a irem buscar.
Tinha sido drogada e levada, com outra ucraniana,
para um bordel da Turquia,
onde trabalhara como escrava sexual.
Um dia, um cliente regular teve pena dela,
raptou-a e levou-a para Moscovo, escondida numa mala.
A amiga não quis regressar,
com vergonha de como a olhariam na sua aldeia.
Muitas mulheres não voltam, mesmo
quando têm oportunidade de o fazer,
por causa da mentalidade intolerante nas suas regiões,
ou porque não têm coragem de encarar as famílias,
a quem prometeram que trariam muito dinheiro,
ou com medo dos maus tratos de pais, irmãos e maridos.
Era uma vez uma mulher de Donetsk,
uma cidade a leste de Kiev, que respondeu
a um anúncio para "baby-siter" sabendo
que iria para a prostituição. Nunca mais voltou.
"Prefiro ser uma prostituta do que ser abusada,
violada e espancada todos
os dias pelo meu marido", explicou.
Para ela, para milhões de mulheres na Ucrânia e no mundo,
o lado negro é afinal em todo o lado.
Sobra todo o cor-de-rosa para os sonhos.
No dormitório do bar de Wakayama,
Natalia e Svetlana falaram com as outras raparigas.
Só temos dinheiro para comida uma vez por semana, disse uma.
O trabalho inclui servir no bar em "topless",
fazer "strip-tease" e ir para a cama com clientes,
admitiu outra. Nenhuma de nós tem consigo
o passaporte, revelou ainda outra.
Todas aparentavam uma saúde debilitada,
notou Svetlana. Vamos fugir, sugeriu Natalia.
Decidiram fugir, e disseram-no às outras.
Nenhuma podia acompanhá-las,
porque não tinham passaporte,
mas todas se dispuseram a ajudar.
Por sorte, o dia seguinte era o da
distribuição de dinheiro para a comida.
Mal o receberam, as raparigas entregaram
a sua parte a Natalia e Svetlana,
que saíram por uma janela.
Apanharam um táxi até ao aeroporto de Osaca.
Telefonaram aos namorados e
conseguiram mudar a data do regresso do bilhete.
Apanharam o primeiro voo para Varsóvia,
onde as esperava o intermediário ucraniano,
que tinha sido contactado pelo
namorado de Natalia.
Desculpou-se alegando tratar-se de
um novo empresário japonês.
Reservou um hotel para as raparigas,
levou-as a um restaurante.
E deixou-as regressar a Lvov,
quando os namorados as foram buscar, no dia seguinte.
Mas agora exige a devolução do dinheiro dos bilhetes.
Dois mil dólares cada uma, soma que nunca conseguirão ganhar.
"Ele já telefonou quatro vezes, da Polónia.
Pediu-nos os passaportes e vistos.
Diz que é para provar à mafia que nós estivemos lá.
" Svetlana está aterrorizada.
Quer queixar-se mas não sabe a quem.
À polícia, nem pensar. "Os japoneses estão muito
zangados, disse ele. E querem acabar
com a relação com a Ucrânia."
Toda a situação é muito prejudicial
à reputação do angariador, explicou ele às raparigas.
"Vocês só lá terem estado um dia, terem fugido,
não é boa propaganda para mim."
Mas o pior é o prejuízo enorme para as mafias.
"As mafias da Ucrânia não vão ficar nada satisfeitas,
digo-vos eu", ameaçou o homem.
Falta uma semana para ele regressar a Lvov
e não se sabe o que vai acontecer.
Sabe-se que a mulher que, de Moscovo,
telefonou aos pais, passou por experiências
de sofrimento indizível no bordel da Turquia.
Experiências tão insuportáveis que o seu cérebro
desligou a memória. Quando chegou a Moscovo,
a mulher sofria de amnésia traumática.
Não recordava o seu nome, nem de onde era,
nem onde tinha estado, nada.
Vagueou pelas ruas de Moscovo com um zumbido
na cabeça, até que se lembrou de um número.
Digitou-o num telefone, sem saber que era o dos pais.
Era uma vez uma mulher, mas esqueceu-se do seu nome.



Reportagem do Público de Abril de 2001, e atualizado em março de 2002

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